CACHORRO FERIDO
1)
Música 01:
É Proibido Proibir (Caetano Veloso)
Música
02:
Einstürzende Neubauten
Filhos
da puta! Não adianta, não é?!! Três horas dando entrevista
para sair isso??! Chamar o filho da mãe do torturador de
médico e eu de terrorista!!! 20 anos depois ele continua
sendo doutor, e a mim, o que que me fizeram? A mim só me
tiraram o capuz... Se ao menos tivessem colocado um ex, não
é, antes de cada nome... Por que não é pedir muito isso,
não é? Ex. torturador e ex. terrorista... nem precisava
colocar profissional liberal... mas médico e terrorista!!!
E ainda por cima com aquele ar de quem ouve os dois lados,
é tudo muito científico, do tipo: veja como se faz uma boa
história da imprensa liberal!!
*
Pai, afasta de mim este cálice
Pai,
afasta de mim este cálice
Pai,
afasta de mim este cálice
De
vinho tinto de sangue
2)
Se
eles pensam que eu vou dançar nesta estão tão enganados...!
Eu não dancei no pau de arara, vou dançar agora por que um
velho gagá decidiu me despedir... E não adianta dizer que
não tem nada a ver por que tem sim! E um dia tem troco.
Quem ele pensa que é? Não, ele não pode fazer isso comigo
não... me deixou completamente sem ação, amarrado,
paralisado... mais uma vez pendurado... Ô meu Deus! Será
que eu não posso ser sacaneado sem pensar nisso?? O carinha
que me despediu está tão velhinho, gagá... tá na beira do
túmulo e é para mim como se fosse o grande torturador, o
todo poderoso...
*
Deixa em paz meu coração
Que
ele é um pote até aqui de mágoa
E
qualquer desatenção, faça não
Pode
ser a gota d´água
3)
Droga...
ela não me telefonou... Eu tenho certeza que ela leu a
matéria e agora não quer mais me ver... Ta simplesmente sem
saber o que fazer, a bobalhona, idiota... Acha que não vai
mais conseguir trepar comigo porque com mártir não se
trepa, é nosso senhor, é Jesus Cristo... quem é que trepa
com Jesus Cristo, hem??? É isso, não é moça? Não dá para
pensar que é humano, que tem vontade, que faz cocô, que tem
tesão, não dá? Quem sobreviveu não é humano... igual ao
torturador, este também não é... Merda, e o pior é que eu
também acho isso... Todos vocês acham que a gente é
diferente, só para fingir que nunca vão estar no lugar da
gente... Olha aqui, vamos fazer aqui uma coisa: uma forca
para cada um de nós em praça pública... Pode parar, pode
parar... Guardem a minha para quando eu tiver oitenta anos,
esta é a minha história e vocês vão ter que me suportar!!!
Musica 3: Beatles
* Eu quis dizer, você não quis escutar
Agora
não peça, não me faça promessas
Eu
não quero dizer, nem quero acreditar
Que
vai ser diferente, que tudo mudou
Você
diz não saber o que houve de errado
E
o meu erro foi crer que estar ao seu lado
Bastaria
O
meu Deus era tudo o que eu queria
Eu
dizia o seu nome
Não
me abandone
Jamais
4)
Música
4:
Calice (versão Milton Nascimento e Chico Buarque)
Manifesto…
manifesto de… manifesto de odio…
*I
Took My Baby
On
A Saturday Bang
Boy
Is That Girl With You
Yes
We're One And The Same
Now
I Believe In Miracles
And
A Miracle
Has
Happened Tonight
But,
If
You're
Thinkin'
About
My Baby
It
Don't Matter If You're
Black
Or White
They
Print My Message
In
The Saturday Sun
I
Had To Tell Them
I
Ain't Second To None
And
I Told About Equality
An
It's True
Either
You're Wrong
Or
You're Right
But,
If
You're
Thinkin'
About
My Baby
It
Don't Matter If You're
Black
Or White
Americanos pobres na noite da Louisiana.
Turistas
ingleses assaltados em Copacabana,
Os
pivetes ainda pensam que eles eram americanos…
Turistas
espanhois presos no Aterro do Flamengo… por engano.
Americanos
ricos ja nao passeiam por Havana.
Viados
americanos trazem o virus da AIDS para o Rio no carnaval.
Viados
organizados de Sao Francisco conseguem controlar a
propagaçao do mal.
So
um genocida em potencial, de batina, de gravata ou de
avental, pode fingir que nao vê que os viados, tendo sido
grupo vitima preferencial, estao na situaçao de liderar o
movimento para deter a disseminaçao do HIV.
Americanos
sao muito estatisticos, tem gestos nitidos e sorrisos
limpidos, olhos de brilho penetrante que vao fundo no que
olham, mas nao no proprio fundo…
Os
americanos representam grande parte da alegria existente
neste mundo.
Para
os americanos branco é branco, preto é preto e a mulata nao
é a tal.
Bicha
é bicha, macho é macho, mulher é mulher e dinheiro é
dinheiro… e assim ganham-se, barganham-se, perdem-se,
concedem-se, conquistam-se direitos, enquanto aqui em baixo
a indefiniçao é o regime.
E
dançamos com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei, entre
a deslicia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime.
Americanos
nao sao americanos, sao uns velhos homens humanos,
chegando, passando, atravessando… sao tipicamente
americanos.
Americanos
sentem que algo se perdeu, algo se quebrou, esta se
quebrando.
Manifesto de ódio à humanidade... Um dia ainda vou escrever
este livro. Será que vão me deixar publicar? Até quando eu
vou ter que abaixar os olhos quando se fala em tortura? E
como é que é isso, hem? Um olhar contido, o rosto
ligeiramente dolorido, nada muito forte... Ninguém pode ser
mandado à merda, afinal de contas ninguém é responsável, só
o torturador... Você? Você não, você estava na sua casa
cuidando de seus filhos, ou então quem sabe em Paris,
cuidando de sua cabeça, agora, o único lugar onde você não
estava, e isso é certo, era nos poroes da ditadura
(Dói-Codi...)
Musica
5:
Einstürzende Neubauten
(neste momento o personagem leva um enorme choque
elétrico, como se estivesse vivenciando um momento de
tortura, depois continua o texto em um fio de voz).
Pois
muito bem, eu aprendi a lição... Um olhar contido, o rosto
ligeiramente dolorido... nada muito forte... E o meu ódio?
Em que merda de privada me dão o direito de jogar o meu
ódio?
*Quando
eu soltar a minha voz, por favor entenda
Que
palavra por palavra, eis aqui uma pessoa se entregando
Coração
na boca, peito aberto, vou sangrando
São
as lutas desta nossa vida que eu estou cantando
Quando
eu abrir a minha garganta, essa força tanta
Tudo
o que você ouvir esteja certa, que eu estarei vivendo
Veja
o brilho dos meus olhos, e o tremor das minhas mãos
E
o meu corpo tão suado, transbordando toda a raça e emoção
E
se eu chorar e o sal molhar o meu sorriso
Não
se espante, cante, que o teu canto é minha força pra cantar
Quando
eu soltar a minha voz, por favor entenda
E
apenas o meu jeito de viver o que é amar.
5)
Olha,
não fui eu quem escreveu isso não... Ta aqui, eu vou ler
para vocês: "Mais um livro editado sobre as prisões nos
anos sessenta. Apesar da enxurrada de livros editados nos
anos que se seguiram à anistia, a esquerda continua
insatisfeita e ainda à espera de sua grande catarze, mas é
bom perguntar se esta é realmente a hora para voltarmos a
este tão desgastado memorialismo..." Mas o que é isso? A
hora? Tem hora para se voltar para isso? Qual é a hora?
Isso aqui parece mais letra do Vandré, tão década de
sessenta... E o carinha que assina a matéria é do tipo
novaiorquino... ele acha out falar em torturas, prisões...
claro, porque ele é moderno, aliás, ele é pós-moderno, e
agora ele vem me falar em hora... quer dizer, eu tenho que
me lembrar na hora que ele determinar... Babaca!
6)
Musica 6:
La la la Human Steps
Você
não vai acreditar no que foi que eu fiz... Eu estava em um
almoço de trabalho, sabe como é que é, é tudo muito fino,
tudo muito intelectualizado, né? Aí, papo vai e papo vem e
não sei quem começou a falar e a lembrar das marcas
deixadas no Brasil pela ditadura, sabe, é o negócio da
questão cultural, essas coisas... Desta vez, eu marquei a
deixa direitinho, respirei fundo e eu comecei assim...
assim como quem não quer dizer nada:" Eu por exemplo, nos
meus primeiros meses de Dói-Codi...”, e continuei, como se
tivesse falando do vestido da cretina que estava sentada lá
no outro lado da mesa... Porra, mas pintou um baixo astral
na mesa que ninguém conseguia continuar o papo... O carinha
que estava no meu lado, eu podia ver, por que estava
escrito na testa dele, não sabia o que fazer:”Ô, meu Deus,
será que eu pergunto alguma coisa ou não pergunto?”. A
cretina que estava sentada na minha frente, eu senti que
ela quis pegar na minha mão, assim, num ato de
solidariedade, né, mas não, ela preferiu uma frase curta e
bem afetiva:”Que tempos, hem?!!” Eu juro que foi muito
engraçado. Desta vez era eu quem sentia a maneira como eles
me olhavam, a maneira como eles mexiam com as mãos... eles
não sabiam o que fazer com as mãos... cada uma das suas
dúvidas. Desta vez, quem dirigiu o espetáculo fui eu. Fui
eu quem jogou o amendoim...
7)
Por
que não pode ser engraçado, hem? Porque as pessoas ficavam
me olhando como se fosse uma brincadeira de mau gosto? O
que e, ninguém mais pode rir da tragédia, é??? Olha eu , eu
quando me lembro da história daquela moça que ficou
paralítica depois que saiu do pau-de-arara, e, ainda assim
pediu ao guarda para não deixar ela sentar na privada
porque tinha medo de pegar gonorréia, eu morro de vontade
de rir... mas ai, se tem alguém de fora vira papo de
maluco... Alguém de fora... O riso é meu, o humor é meu, o
choro é meu... A tortura só pode ser descrita: passou três
dias no pau-de-arara, ficou paralítica, levou choque
generalizado pelo corpo, assim rápido, curto, grosso,
impessoal... mas ninguém fez xixi no pau-de-arara, ninguém
caiu do pau-de-arara, ninguém riu de ninguém !!!
8)
Meu
amigo Pedro:
Meu
amigo Pedro era uma pedra na vida deles. Como um pedaço
solto de coragem, nem
bem
crescido ainda, saiu, lutou e morreu. Morreu assim como um
corpo arrebentado, esticado, dividido. Morreu como um
afogado, agonizando, torturado. Morreu como seu pai,
desaparecido. Mas ninguém esperava que ele fosse reviver.
Ninguém esperava que ele fosse mais do que aquele monte de
carne e osso que sobrou depois de dois dias nas salas
escuras, depois de dois dias de choques, água fria,
pauladas, perguntas... Ninguém esperava que Pedro fosse de
pedra... Que pedra pode estar parada, inerte, mas pode ser
pedra no ar, um arremesso, um tiro, um vidro estilhaçado...
Que pedra pode ser raiva na multidão, pode ser fogo, fome,
febre, pedra pode ser mais!! Porque carne é mais que pedra,
e Pedro é muito mais que carne... Que não adianta represar
os rios se não se pode parar a chuva. Ninguém esperava que
seus amigos, irmãos, todos, todos soubessem de tudo, mas
que não podiam fazer nada... Que a diferença de Pedro e nós
é a mesma de um assaltante de bancos e um batedor de
carteiras... Mas o tempo é o melhor remédio, e o tempo tudo
cura... Mesmo as feridas deixadas por Pedro... menos as que
em seu corpo permaneceram depois que ele ficou ali num
canto da sala agonizando enquanto tomavam café! Mas o que
eu quero dizer, é que ninguém esperava que eu, justamente
eu, filho da mesma noite, contasse essa história!
*
O pedaço de mim
Ó
metade arrancada de mim
Leva
o vulto teu
Que
a saudade dói como um parto
É
como arrumar o quarto
Do
filho que já morreu
9)
Música 7:
Flor da Pele – Zeca Baleiro
Um
dia, eu disse a um dos meus torturadores, um que se achava
muito inteligente... e eficiente... que eu preferia que ele
me tivesse matado a ter sido torturado... Pode parecer uma
frase de efeito, mas você não sabe como era verdadeira. Ele
riu... ele riu e disse que daqui a vinte anos eu iria
agradece-lo por estar vivo. Eu não sei como é que é essa
história de que a vida continua, eu só sei que ela continua
e que eu não posso agradecer! E que eu preferia que
houvesse uma outra opção à vida que não fosse a tortura.
Mas hoje eu não quero pensar sobre isso não... Eu vou
sair... É, eu vou sair, acho até que vou tomar um porre...
Vou descolar alguém... Mesmo que amanhã de manhã eu tenha
que avisar: Olha, vá com cuidado, tá? Vá com cuidado porque
já me machucaram pra caralho... É, eu acho que é isso... Eu
deveria colocar uma placa: Cuidado, cachorro ferido!
Musica
10:
Flor na Favela
FIM
Observações:
No
início, enquanto o público entra, o personagem já está
sentado em uma cadeira observando o publico nos olhos. A
música do Caetano entra, o personagem acende um cigarro e o
fuma inteiro até a música acabar. Depois levanta, tira a
blusa preta e o deixa cair no chão, como se tivesse
pendurado em um cabide, depois pega o jornal e senta na
cadeira, virado de costas para o público, para a primeira
frase coreográfica. Todas as músicas marcadas com "*" serão
cantadas pelo personagem.
Antes
do texto (3), como se passasse mal, vomita no balde e logo
após afoga a cabeça na água por quase um minuto, como se
alguém estivesse forçando sua cabeça. Após este ato,
retirar, de dentro do balde, o telefone celular molhado. Ao
terminar o texto inicia a musica dos Beatles e segue uma
sequência coreografica.
Antes
do texto (4), vestir as botas.
(Cena
5) Transição para o início: sapateado militar
Transição
para o final: beber todo o conteúdo da garrafa e acabar
rindo como embriagado.
Na
última cena (6), a música do Zeca Baleiro toca até o final,
aumentando a altura quando acabar o texto, deixando o foco
apagar, levente, sobre o personagem que veste novamente a
blusa preta.
Material:
•
1 cama de molas sem colchão
•
1 calça marrom
•
1 camisa marrom
•
1 blusa preta de manga longa
•
1 cadeira
•
1 cadeira “aérea”
•
1 par de botas
•
1 cinta
•
1 balde com água
•
1 telefone celular
•
1 jornal
•
1 caixa com cigarros
•
1 cinzeiro
•
1 isqueiro